Kaufungen é um pequeno município no
distrito de Kassel, situado no Estado de Hessen, na Alemanha. O burgo foi
fundado no ano de 1017. Hoje, tem aproximadamente 12 mil habitantes. A cidade
possui dois bairros, Niederkaufungen e Oberkaufungen - e pode ser traduzido
como cidade baixa e cidade alta, respectivamente.
Em 1980, 12 pessoas residentes em Hamburgo formaram um grupo com
objetivo de criar uma comunidade amparada na utopia de vida dos integrantes e
no trabalho comunitário. No ano de 1983, o grupo escreveu uma Carta de
Princípios e se estruturou juridicamente como uma organização sem fins
econômicos.
Eu não quero mais que minha
força de trabalho, minha saúde, e minha energia sejam exploradas e dominadas
(Carta de Princípios, 1983).
Em
1986, a então "associação de amigos do meio-ambiente" adquiriu da
família Schreiber, no município de Kaufungen, um complexo de casas no
estilo enxaimel com cinco mil metros quadrados e mais dois mil metros de área
comercial - uma pequena vila. À época, dezessete integrantes, com conhecimentos
prévios de autogestão e clareza quanto ao modo de vida explicitado na Carta de
Princípios, passaram a morar juntos, trabalhar e compartilhar todos os bens da
comuna de Niederkaufungen. Após 31 anos da sua fundação, atualmente sessenta
pessoas e vinte e sete crianças e adolescentes moram e trabalham nesta Comuna.
A
comunidade é organizada e gerida a partir de quatro princípios vitais: 1)
orientação política de esquerda; 2) economia coletiva; 3) o consenso;
4) a desconstrução das estruturas de poder da família convencional e na
questão de gênero.
Segundo
o regimento da organização, a orientação política de esquerda deve
permear todas as atividades econômicas da Comuna e o modo de vida dos
moradores. A meta é experimentar uma sociedade avessa à sociedade capitalista.
Para isso, a Comuna preconiza a não exploração uns dos outros, a ausência de
hierarquias, a não dominação de saberes e crenças e a aversão a qualquer forma
de preconceito. Eles são contrários à propriedade privada e consideram os
movimentos ecológicos, marxistas, feministas e anarquistas como representantes
da esquerda contemporânea e capazes de realizar juntos o projeto socialista.
A ecologia
política é colocada em prática na produção e no consumo de alimentos sem
agrotóxicos e sem conservantes. O grupo também participa de ações e protestos
contra a energia atômica, a favor do feminismo, das imigrações e do movimento
Attac < https://www.attac.org/>
A administração dos recursos
financeiros também é coletiva de modo que na Comuna existe um caixa único que
recebe valores advindos dos negócios do grupo, dos salários dos membros que
trabalham fora da Comuna, dos auxílios sociais que alguns membros recebem do
poder público, de presentes e de doações. Já o capital é constituído do
patrimônio das pessoas que aderem à vida na Comuna - seus bens móveis e imóveis
são doados à Organização e passam a ser bens coletivos. As despesas cotidianas
como transporte, alimentação, vestuário, lazer e férias são suportadas pelo
salário de cada um, salário-família, auxílio desemprego e por doações. Na
economia coletiva, as propriedades e o dinheiro são de todos. Na comunidade, os
moradores são livres para decidir quando e como desejam realizar um
aperfeiçoamento pessoal ou profissional, porém a decisão deverá ser apresentada
para o grupo e decidida coletivamente numa plenária. O mesmo acontece com as
férias - cada um decide o tempo que
necessita e quando vai usufruí-las. O objetivo é incentivar uma postura
individual e coletiva responsável e consciente diante da produção, do consumo e
do seu próprio comportamento grupal.
O consenso ou o processo de
tomada de decisão não é regido pelo princípio da maioria. Pelo princípio da
maioria, a maioria vence a minoria que demonstra resistência à adesão do que
foi decidido pela maioria. No método do consenso não há votação e todos têm
direito ao veto. As pessoas devem ouvir umas às outras e coletivamente colocar
uma ideia em prática. Isso não pressupõe o convencimento ou a existência de
estruturas de poder e só funciona no bojo de uma lógica de respeito e aceitação
dos desejos e necessidades do próximo. Muitas vezes, ocorre dessa prática não
acontecer harmonicamente. Neste interim, o grupo busca ajuda externa de um
mediador.
A desconstrução das estruturas
de poder é o 4º fundamento da vida em comunidade em Niedergaufungen. O
grupo entende que a família, como primeiro grupo de socialização das crianças,
representa um locus de enfrentamento dos valores capitalistas. Neste
contexto, as relações hierárquicas entre pai, mãe e filhos, a opressão, a
obediência e a repressão sexual devem ser eliminadas porque, segundo o grupo,
reproduzem as relações capitalistas. Para eles, as habitações coletivas, onde
moram até oito pessoas, possibilitam a desestruturação da família
"burguesa" e fomenta a escuta mútua, a solidariedade e a tolerância.
A dinâmica do WG Abend (noite de encontro do grupo) pode ocorrer
semanalmente ou quinzenalmente, e possibilita o diálogo entre os moradores de
cada habitação; o objetivo dos encontros é a troca de ideias e a exposição
sobre seus sentimentos e dificuldades em relação aos companheiros de moradia.
Homens e mulheres que vivem na comunidade exercem uma profissão, podem abrir
pequenos negócios dentro da comunidade e implementar novas ideias, se aceitas
por todos. Para além do trabalho profissional, todos devem participar do plano
de tarefas e de limpeza das dependências comuns e privadas, sem discriminação
de gênero.
Atualmente são desenvolvidas quatro
áreas de comércio na Comuna: alimentação (hortas orgânicas, produção de
mel e derivados do leite e pratos feitos para o consumo interno e externo);
saúde (atendimento em diversas especializações como acupuntura, fisioterapia,
psicologia e gerontologia); habitação (metalúrgica, marcenaria e placas
solares); desenvolvimento pessoal (palestras, congressos, produção de
material impresso, impressão em 3D e pesquisas).
Nesse sentido, a empresa chamada
Cozinha oferece alimentação para todos os moradores da Comuna e para mais três
empresas do grupo - a creche, o centro geriátrico e o centro de convivência.
Também oferece serviço particular para festas e confraternizações nas cidades
vizinhas. Faz parte da empresa Cozinha, a produção própria de leite, queijo,
iogurte, os pomares e a horticultura produzidos de forma sustentável.
Na área da saúde, a Comuna
administra consultórios de atendimento psicológico e de supervisão,
fisioterapia, acupuntura, ginástica funcional e uma clínica geriátrica
especializada no atendimento de portadores de Alzheimer.
No setor de habitação, o grupo
desenvolve material de isolamento térmico residencial e restauração de casas
antigas. Há ainda uma metalúrgica e uma marcenaria de apoio e uma área específica
de planejamento e montagem de placas solares.
No âmbito do desenvolvimento
pessoal, o centro de convivência oferece regularmente seminários, cursos e o
desenvolvimento de pesquisas de opinião, bem como a produção e edição de obras
referentes aos temas relevantes sobre o tema comunas.
A economia coletiva praticada pelo
grupo pressupõe que todas as pessoas da comunidade desenvolvam suas habilidades
e que essas não estejam vinculadas com a mera produção de bens que visam rendimentos
e lucros. Assim, as atividades domésticas como lavar, secar e guardar a louça
têm o mesmo valor das atividades realizadas no consultório médico, na
realização de palestras e no processo educativo nas creches. Dito de outra
forma, a divisão parcelar e a hierarquia no trabalho são teoricamente
inexistentes nesta forma de organização social; não há divisão social do
trabalho.
Acima, fiz uma compilação do
histórico, dos princípios e da vida cotidiana na comuna de Niederkaufungen.
Abaixo, teço sucintamente algumas considerações pessoais sobre ela:
*Niederkaufungen não é a única comuna da
Alemanha. O país se constitui como um estado democrático de direito e assim
permite a livre associação de pessoas, desde que obedecidas as leis. As comunas são pessoas jurídicas regidas pela
legislação das organizações não governamentais.
*As associações de pessoas se
caracterizam como Non-Profit-Organisationen / NGOs (ONGS) e desfrutam da lei da
caridade, não sujeitas ao pagamento de impostos, o que as tornam atraentes para
quem possui bens imóveis, mas sem meios de sobrevivência. Na Alemanha há uma
complexa e efetiva rede de benefícios sociais para garantir o bem-estar de
todos, porém, para usufruir dos benefícios sociais é preciso primeiro esgotar
as possibilidades materiais pessoais.
*As comunas não conseguem a
autossuficiência. Ofertam uma série de serviços pagos para o público externo,
como também adquirem mercadorias de empresas privadas. Outra fonte de renda são
os benefícios sociais (sozialhilfe) a que os membros têm direito enquanto
cidadãos alemães.
*Descrito no histórico da Comuna de
Niederkaufungen, cerca de mil pessoas sentiram-se atraídas pelo projeto
inicial. Todavia, tudo indica que durante as três décadas de existência não
mais de 100 membros, entre crianças, adolescentes e adultos, viveram juntos num
mesmo período de tempo. É possível inferir que as crianças em idade escolar, ao
se defrontarem com outra realidade fora da Comuna, optam em deixa-la ao
adquirirem a maioridade legal.
*Particularmente, a visita à Comuna
foi para mim uma experiência rica e reveladora. Creio que o modo de vida coletivo pode ser enriquecedor para alguns, mas fonte geradora de
angústias e limitações para outros. A produção é limpa e ecológica, porém
insuficiente para a subsistência do grupo. O Estado continua sendo uma fonte
fundamental de sobrevivência da Comuna, seja através da isenção de impostos ou
pela ajuda social.
*A organização de vida de tais
grupos é sem dúvida uma prática de contestação ao modo de vida capitalista.
Particularmente, questiono se tais experiências poderiam prosperar nas
democracias, enquanto projetos nacionais, submetendo milhões de pessoas a um
sistema, paradoxalmente, extremamente rígido. A história revela as ditaduras
como regimes inaugurais das "revoluções" socialistas, enquanto que o capitalismo, na visão de Fábio Konder, se estabeleceu
historicamente e globalmente como uma civilização.
*Contudo, é fato o declínio do
pensamento de esquerda no mundo ocidental. Alguns acadêmicos creditam à
narrativa defasada a causa para o sucedido. O ambiente social do século XXI
nada mais tem a ver com as sociedades industriais do século XIX. A comunicação
hostil também está descolada dos anseios de paz para o mundo. Hodiernamente,
reatualizar a teoria e renovar o espírito socialista passa respectivamente pela
adequação da teoria às práticas. Dessa perspectiva, erigir uma comuna no
Brasil, enquanto usina de experiências práticas, não seria uma ideia anacrônica
no bojo dos movimentos de esquerda do país.
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