No
ano de 2001, meu filho e eu entramos numa aeronave posicionada na pista do
aeroporto internacional Salgado Filho em um voo comercial Porto Alegre - São
Paulo. Antes mesmo de alcançarmos o corredor que nos levaria às poltronas,
observamos uma certa lentidão e a formação de uma pequena fila, o que não era
comum em dias normais. Logo no primeiro assento, vimos que havia uma autoridade
se acomodando, ao mesmo tempo que tentava educadamente responder com um aceno
gentil à silenciosa reverência de cada cidadão que por ele passava. Não houve
nenhum cumprimento verbal por parte dos passageiros, que eu lembre, apenas
curvavam levemente a cabeça ao reconhecê-lo. Quando nos posicionamos nas nossas
poltronas, um pouco atrás dessa autoridade, meu filho, então adolescente,
perguntou-me: - mãe, ele é um padre? Eu respondi que não, mas que se tratava de
uma alta autoridade do judiciário brasileiro, o Dr. Paulo Brossard.
O
ex-ministro do STF era gaúcho de Bagé. Ele fez uma carreira política e jurídica
ética e respeitável e, por isso, reconhecido e admirado pela comunidade gaúcha
e brasileira. Começou a carreira política em 1955. Foi deputado estadual,
deputado federal, senador, professor universitário, ministro da justiça,
ministro do Tribunal Superior Eleitoral e ministro do Supremo Tribunal Federal.
No início da carreira política pertenceu à Liga Eleitoral Católica; se
posicionou contra a construção de Brasília – dizia que “somente um governo
insensato, irresponsável, megalômano, é capaz de se dar ao desperdício de
verbas e em gastos improdutivos”. Defendia o parlamentarismo, mas quando João
Goulart foi retirado da presidência pelos militares, em 1964, em razão de ter
acenado para os comunistas, digamos a verdade - Brossard disse: “governo não é
derrubado, governo cai”. Enfim, muito se poderia discorrer sobre a trajetória
política e jurídica do Dr. Paulo Brossard, mas é suficiente afirmar que se
tratou de homem público idôneo, com irrefutável saber jurídico e um
constitucionalista autêntico. Contribuiu, sem dúvida, para um país democrático
e minimamente justo, muito diferente de como age hodiernamente parte do
judiciário brasileiro. Quando ministro do STF, restringiu-se a falar somente
nos autos. Baseava suas decisões nas leis e na consciência de um homem bom e
justo.
Se
no passado a Suprema Corte brasileira atuava como guardiã da Constituição,
avaliando objetivamente a constitucionalidade das leis, e somente quando
provocada atuava como legislador negativo, ou seja, declarando nulas as leis
incompatíveis com a nossa Constituição - de um tempo para cá passou ela
própria, a Corte, a fazer as leis que deveria apenas julgar de modo imparcial,
descartando quaisquer outros interesses. Para além dessa atual excrescência,
assumiu também competências do executivo ao judicializar certas políticas
públicas, a exemplo do período da Pandemia. Distribui publicamente opiniões
sobre tudo sem pudor e de modo ideológico, e atua como polícia investigativa.
A insigne preocupação da Corte tem sido
desde 2018 “andar” à caça de Fake News. Fake News para os ministros do STF é
toda e qualquer postagem nas redes sociais que não atende aos interesses
políticos e ideológicos progressistas globais. Pasmemos, até mesmo a
antecipação dos votos em processos que estão em tramitação, membros da Corte têm
publicizado em canais de televisão.
Muitas das ações que o STF julga hoje não são de sua competência
jurídica, mas de seu interesse político. Por si só isso se configura num
escândalo sem precedentes no judiciário brasileiro. Não sou eu quem diz isso,
quem afirmou em alto e bom som foi o próprio ministro Luís Roberto Barroso por
ocasião da abertura do 7º Encontro do Conselho de Presidentes de Tribunais de
Justiça do Brasil, realizado na capital gaúcha, em julho de 2023. Barroso
afirmou no evento que “o Poder Judiciário passou por um “processo de ascensão”
e deixou de ser um “departamento técnico especializado” para ser um poder
político”.
Não
para por aí...
Outro ministro despudorado é Gilmar Mendes.
Não cansa de conceder entrevistas às redes de televisão. Algumas travestidas de
redes privadas, mas na verdade comprovadamente estatais, pois não sobreviveriam
sem os recursos do Estado. O ministro citado já fez declarações que enxovalham
o judiciário brasileiro. Uma delas foi a de confessar que o atual presidente da
República foi eleito graças a uma decisão do STF. Outra pérola do ministro
Gilmar foi ao se incomodar com uma pergunta do jornalista da Folha de São Paulo
por ocasião de um seminário de Direito, organizado pelo Instituto Brasiliense
de Direito Público, que ocorreu em Lisboa, em 2018. O repórter perguntou ao ministro de que forma
foi custeada a estadia dele em Portugal. Trata-se de uma pergunta legítima,
nada tem de ofensiva. É direito e dever do cidadão brasileiro fiscalizar os
gastos públicos. O repórter recebeu uma resposta no mínimo inusitada de Gilmar:
“devolva essa pergunta ao seu editor, manda ele enfiar isso na bunda”.
No
dia 19 de janeiro último, novamente em Portugal, (Gilmar mora em Portugal ou no
Brasil?) o ministro afirmou que há em curso uma onda global de ataques contra o
Poder judiciário, cujo objetivo é o de minar a “independência” do poder
judiciário sob pretexto de reformas judiciais. Esses “ataques” estariam sendo
capitaneados pela Hungria, Polônia, Israel e Brasil. Isso aqui, meus amigos, se
chama desvio de função, com interferência na política externa do nosso País, o
que pode gerar uma crise diplomática. Curiosamente, nenhuma instituição parece
se importar com esse despautério. Segundo Gilmar, a conspiração tem origem no
Brasil e é fomentada pelos deputados bolsonaristas. Eles teriam o objetivo de
propor uma reforma judiciária que permitiria ao Congresso sustar decisões da
Corte e criar mandatos de apenas 15 anos para os togados. Curioso que essa
proposta de limitar o mandato de juízes da Suprema Corte tenha tirado o sono de
Gilmar – isso porque o ministro tem tese de doutorado defendida na Alemanha,
país este onde os ministros da Suprema Corte têm mandatos de 12 anos. Mas aqui
no Brasil, os congressistas eleitos pelo voto popular não devem ter a
prerrogativa de propor leis que impeçam atos tresloucados de servidores
públicos que estão a extrapolar as suas funções. Nem pensar, não é mesmo?
Gilmar já antecipou os votos de todos os ministros e afirmou que qualquer
decisão do Congresso sobre esse tema será derrubada pelo STF. A empáfia, a certeza de um sólido “reinado”
absoluto dos togados e a síndrome persecutória própria dos ditadores salta aos
olhos.
O
que escrever sobre o ministro Alexandre de Moraes? Um nome tirado da cartola do
então presidente Michel Temer para substituir o recém falecido ministro Teori
Zavascki, num acidente aéreo. Dois delegados que investigavam o caso foram assassinados
em Santa Catarina, e o inquérito subiu para Brasília. Zavascki era relator
do processo da Lava-jato que investigou o maior esquema de corrupção que se tem
conhecimento na história da humanidade. Cabia ao ministro homologar os acordos
de delação premiada dos executivos da Odebrecht. Em abril de 2019, uma matéria
de capa da revista Crusoé sob título “o amigo do amigo do meu pai” revelou que
Marcelo Odebrecht havia confirmado à Polícia Federal, por intermédio de
documentos, que o codinome “amigo do amigo do meu pai”, que constava da lista
de supostas autoridades que recebiam propinas da empreiteira, era o do ministro
Dias Toffoli. Moraes herdou grande parte dos processos de Zavascki, e se
adiantou em determinar a imediata retirada da reportagem do site O Antagonista.
Já nesta primeira incursão como sensor da liberdade de expressão, ele estipulou
uma multa diária de 100 mil reais no caso de descumprimento da ordem judicial e
determinou que a Polícia Federal intimasse os responsáveis pela revista a
deporem num período máximo de 72 horas. Modus operandi esse que tem pautado os
atos “jurídicos” de Moraes até os dias de hoje. Edson Fachin foi “sorteado” o
novo relator da Lava-Jato, e foi quem anulou, em 2021, todas as condenações de
Lula impostas pela Justiça Federal do Paraná na Operação Lava Jato.
E
foi assim que tudo começou, quando a justiça chegou perto de quem deveria fazer
justiça. A partir daí, na minha opinião, o STF inicia um processo de autofagia,
arrastando com eles toda a estrutura do poder judiciário brasileiro, até mesmo
instrumentalizando outras instituições. Não cabe aqui discorrer sobre os
atropelos jurídicos protagonizados pelo ministro Moraes, a maioria dos
brasileiros acompanha atônitos as suas determinações nada constitucionais e
insensatas. São fartos os exemplos de censura, intimidações, prisões ilegais,
contas derrubadas nas redes sociais, suspeitas infundadas, provas “criativas”
forjadas, políticos cassados, perseguições a jornalistas, juíza solicitando
asilo político, contas bancárias bloqueadas, aplicação de multas extorsivas,
abuso de autoridade, tortura psicológica, sentenças abusivas, inquéritos
sigilosos intermináveis. Há tantos outros desatinos cometidos cinicamente em
nome da defesa da democracia, que julgo negacionista aquele que ainda não
entendeu que nós brasileiros vivemos hoje em um estado de exceção. Resta-nos
saber sob que proteção poderosa tudo isso tem sido aplicado no Brasil sem
resistência institucional exitosa.
Antemão
peço escusas aos amigos face a extensão do texto – não sou jornalista, ao
contrário, tenho vício acadêmico dos textos longos e fundamentados, hábito esse
que se estende aos meus textos opinativos nas redes sociais.
Não
quero me furtar de discorrer sucintamente sobre uma emenda constitucional
aprovada pelo Congresso em 2004, sob comando do governo I de Lula. Não tenho
visto absolutamente nenhum jornalista, político ou especialista em direito rediscutindo
amplamente sobre a emenda constitucional nº 45/2004, que atribui ao STF poderes
extraordinários como, por exemplo, elaborar atos normativos como as leis,
vinculantes de todo o poder judiciário e da Administração Pública, direta e
indireta, em todos os níveis da federação. Somos testemunhas de o quanto o STF
se intrometeu nas políticas públicas de saúde propostas pelo executivo federal,
entre 2020 e 2022. Recente relatório do Congresso americano sobre a Covid-19
concluiu, em mais de 500 páginas, que a maioria das medidas sugeridas pelos
cientistas panfleteiros oficiais, que figuraram livremente nas mídias
televisivas e digitais, foram desproporcionais, contribuindo até mesmo
negativamente sobre a saúde da população mundial. Fica a lição de uma
ingerência política muito malsucedida por parte do STF, baseada numa visão
monolítica sobre uma doença desconhecida.
Muito
embora a área da Assistência Social transite pelo mundo das leis,
particularmente no bojo das políticas públicas, não tenho autoridade acadêmica
para analisar decisões judiciais. No entanto, vou dirigir meu foco para as
consequências sociais, psicológicas e humanas dessa manobra jurídica, sob
codinome de súmula vinculante (Lei n. 11.417/06), que coloca de joelhos frente
à Suprema Corte todos os demais poderes e instituições da união, em todas as instâncias
federativas.
A
proposta de súmulas vinculantes é antiga, data da revisão constitucional de
1994. Porém, tomou forma robusta no primeiro mandato do PT. Foi a plenário e
aprovada em 2004 sob relatoria do deputado federal, Maurício Rands, do Partido
dos Trabalhadores de Pernambuco, e aprovada pela Câmara em 2004. Resumidamente,
a súmula vinculante instituída pela emenda constitucional nº 45/2004 preconiza
o monopólio da interpretação jurídica nas mentes de apenas 11 ministros com
posições ideológicas bastante claras. Segundo esse dispositivo, um texto
constitucional ou legal só será editado, revisto, cancelado ou aprovado
mediante a concordância da Corte, com anuência necessária de 8 dos 11
ministros. Isso significa que o STF tem a prerrogativa de, por ofício ou por
provocação, providenciar a revisão ou cancelamento das súmulas (decisões
reiteradas da Corte). Os enunciados editados pela Corte são publicados na
imprensa oficial e passam a ter efeito vinculante, vejam só, em relação aos
demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta,
nas esferas federal, estadual e municipal. Qual é a preocupação? Se o STF
decidiu aplicar uma pena desproporcional de 17 anos de prisão para uma cidadã
mãe, trabalhadora e sem antecedentes criminais, cujo “crime” foi escrever com
batom, parafraseando um servidor público, a frase “perdeu mané”, numa estátua
que pouco ou nada representa hoje para o brasileiro comum – um juiz de primeira
instância deverá imputar pena semelhante para grafiteiros que sujam os prédios
das capitais diuturnamente. Outro exemplo: cinco moradores de rua que
perambulavam pela Praça dos três poderes em Brasília, no 8 de janeiro de 2023,
foram presos acusados de atos antidemocráticos a mando do Ministro Moraes. Após
dois anos esquecidos na prisão, o ministro os “absolveu” sem comprovação de
crime e determinou a soltura diante da pressão da mídia independente. Bem,
posso inferir que pessoas participando de uma manifestação política pacífica ao
ar livre, mesmo que este ato seja constitucional, um juiz de primeira instância
poderá mandar recolher à prisão até mesmo quem esteja passando pelo local. Em
Porto Alegre, em frente à praça da Alfândega, onde ocorre anualmente a Feira do
Livro, alguém escreveu num tapume a palavra “Desobedeça”. Bem, o que isso pode
significar? Um ato antidemocrático? Um ato de incitação à desordem? Um desabafo
de alguém sob pressão no trabalho? Um filho adolescente birrento enfrentando os
pais? Será que foi um louco em crise, ou um desses bêbados que costumam perambular
pelas noites da provinciana capital gaúcha? Alguns metros adiante se localiza o
Quartel do Comando Militar do Sul. Seria uma mensagem subversiva aos
soldados?
A
partir do entendimento amplo, mas impreciso e político, do STF sobre o que são
atos antidemocráticos, um juiz de primeira instância pode determinar o
recolhimento imediato à prisão de quem escreveu “Desobedeça”, desconsiderando
previamente o contexto do ato e as circunstâncias do autor, aplicando apenas a
súmula vinculante. Isso abre um precedente perigoso para a perseguição política
e até mesmo social. O autoritarismo do STF está forjando no Brasil uma
sociedade amedrontada, amordaçada e dividida ao molde de um regime de
segregação política e ideológica.
Segundo
a perspectiva do Desembargador aposentado, Sebastião Coelho, “o STF vai colocar
o Brasil em uma convulsão social”. Entrevista concedida ao programa Oeste sem
Filtro, em 21 de novembro de 2024.
Finalizo
aqui, amigos, lamentando a fundura que atingiu a Justiça brasileira, muito
abaixo do fim do poço. Ministros mal-educados, arrogantes, autoritários e
ativistas que em nada lembram um alto corpo jurídico discreto, respeitoso, com
notável saber jurídico e reputação ilibada, que há bem pouco tempo compunha a
nossa Suprema Corte. Ministros como o dr. Paulo Brossard, Eros Grau, Ellen
Gracie, entre muitos outros que privaram da admiração do povo a ponto de se
deslocarem sem receio em voos comerciais. Hoje, os ministros do Tribunal
Superior que “salvaram a democracia” não podem sair às ruas, se deslocam em
aviões da FAB, torram mais de 80 milhões dos cofres públicos em segurança
armada privada, levam uma vida nababesca com refeições como bobó de camarão;
camarão à baiana; medalhões de lagosta com molho de manteiga queimada e vinhos
premiados - tudo pago com os recursos de uma sociedade “incivilizada”, segundo
o entendimento do próprio ministro Barroso. Recentemente, ele informou à
imprensa que “o maior legado da sua gestão como presidente do STF será a
"total recivilização do Brasil”. Já estou até sonhando com a nossa
“recivilização” que, certamente, vai incluir viagens aéreas internacionais na
primeira classe, refeições com cardápios grã-finos e um salário assemelhado aos
dos ministros. Afinal, eles são, segundo eles mesmos, o parâmetro da civilidade
humana.
Quando
a ministra Rosa Weber “presenteou” Jair Bolsonaro com um exemplar da
Constituição brasileira – muitos acreditaram que se tratava de um alerta ao recém-eleito
presidente, acusado de autoritário, e outros “istas”, na mídia tradicional.
Ledo engano. Na minha interpretação, a mensagem foi clara: quem manda é o
Supremo.
Estou
convicta, queridos, de que a estupidez é a antessala da derrota.
Deus
salve o Brasil!
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