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terça-feira, 30 de maio de 2017

A Comuna de Niederkaufungen




Kaufungen é um pequeno município no distrito de Kassel, situado no Estado de Hessen, na Alemanha. O burgo foi fundado no ano de 1017. Hoje, tem aproximadamente 12 mil habitantes. A cidade possui dois bairros, Niederkaufungen e Oberkaufungen - e pode ser traduzido como cidade baixa e cidade alta, respectivamente. 
Em 1980, 12 pessoas residentes em Hamburgo formaram um grupo com objetivo de criar uma comunidade amparada na utopia de vida dos integrantes e no trabalho comunitário. No ano de 1983, o grupo escreveu uma Carta de Princípios e se estruturou juridicamente como uma organização sem fins econômicos.

Eu não quero mais que minha força de trabalho, minha saúde, e minha energia sejam exploradas e dominadas (Carta de Princípios, 1983).

Em 1986, a então "associação de amigos do meio-ambiente" adquiriu da família Schreiber, no município de Kaufungen, um complexo de casas no estilo enxaimel com cinco mil metros quadrados e mais dois mil metros de área comercial - uma pequena vila. À época, dezessete integrantes, com conhecimentos prévios de autogestão e clareza quanto ao modo de vida explicitado na Carta de Princípios, passaram a morar juntos, trabalhar e compartilhar todos os bens da comuna de Niederkaufungen. Após 31 anos da sua fundação, atualmente sessenta pessoas e vinte e sete crianças e adolescentes moram e trabalham nesta Comuna. 

A comunidade é organizada e gerida a partir de quatro princípios vitais: 1) orientação política de esquerda; 2) economia coletiva; 3) o consenso; 4) a desconstrução das estruturas de poder da família convencional e na questão de gênero. 

Segundo o regimento da organização, a orientação política de esquerda deve permear todas as atividades econômicas da Comuna e o modo de vida dos moradores. A meta é experimentar uma sociedade avessa à sociedade capitalista. Para isso, a Comuna preconiza a não exploração uns dos outros, a ausência de hierarquias, a não dominação de saberes e crenças e a aversão a qualquer forma de preconceito. Eles são contrários à propriedade privada e consideram os movimentos ecológicos, marxistas, feministas e anarquistas como representantes da esquerda contemporânea e capazes de realizar juntos o projeto socialista.

A ecologia política é colocada em prática na produção e no consumo de alimentos sem agrotóxicos e sem conservantes. O grupo também participa de ações e protestos contra a energia atômica, a favor do feminismo, das imigrações e do movimento Attac < https://www.attac.org/> 

A administração dos recursos financeiros também é coletiva de modo que na Comuna existe um caixa único que recebe valores advindos dos negócios do grupo, dos salários dos membros que trabalham fora da Comuna, dos auxílios sociais que alguns membros recebem do poder público, de presentes e de doações. Já o capital é constituído do patrimônio das pessoas que aderem à vida na Comuna - seus bens móveis e imóveis são doados à Organização e passam a ser bens coletivos. As despesas cotidianas como transporte, alimentação, vestuário, lazer e férias são suportadas pelo salário de cada um, salário-família, auxílio desemprego e por doações. Na economia coletiva, as propriedades e o dinheiro são de todos. Na comunidade, os moradores são livres para decidir quando e como desejam realizar um aperfeiçoamento pessoal ou profissional, porém a decisão deverá ser apresentada para o grupo e decidida coletivamente numa plenária. O mesmo acontece com as férias -  cada um decide o tempo que necessita e quando vai usufruí-las. O objetivo é incentivar uma postura individual e coletiva responsável e consciente diante da produção, do consumo e do seu próprio comportamento grupal.

O consenso ou o processo de tomada de decisão não é regido pelo princípio da maioria. Pelo princípio da maioria, a maioria vence a minoria que demonstra resistência à adesão do que foi decidido pela maioria. No método do consenso não há votação e todos têm direito ao veto. As pessoas devem ouvir umas às outras e coletivamente colocar uma ideia em prática. Isso não pressupõe o convencimento ou a existência de estruturas de poder e só funciona no bojo de uma lógica de respeito e aceitação dos desejos e necessidades do próximo. Muitas vezes, ocorre dessa prática não acontecer harmonicamente. Neste interim, o grupo busca ajuda externa de um mediador. 

A desconstrução das estruturas de poder é o 4º fundamento da vida em comunidade em Niedergaufungen. O grupo entende que a família, como primeiro grupo de socialização das crianças, representa um locus de enfrentamento dos valores capitalistas. Neste contexto, as relações hierárquicas entre pai, mãe e filhos, a opressão, a obediência e a repressão sexual devem ser eliminadas porque, segundo o grupo, reproduzem as relações capitalistas. Para eles, as habitações coletivas, onde moram até oito pessoas, possibilitam a desestruturação da família "burguesa" e fomenta a escuta mútua, a solidariedade e a tolerância. A dinâmica do WG Abend (noite de encontro do grupo) pode ocorrer semanalmente ou quinzenalmente, e possibilita o diálogo entre os moradores de cada habitação; o objetivo dos encontros é a troca de ideias e a exposição sobre seus sentimentos e dificuldades em relação aos companheiros de moradia. Homens e mulheres que vivem na comunidade exercem uma profissão, podem abrir pequenos negócios dentro da comunidade e implementar novas ideias, se aceitas por todos. Para além do trabalho profissional, todos devem participar do plano de tarefas e de limpeza das dependências comuns e privadas, sem discriminação de gênero.

Atualmente são desenvolvidas quatro áreas de comércio na Comuna: alimentação (hortas orgânicas, produção de mel e derivados do leite e pratos feitos para o consumo interno e externo); saúde (atendimento em diversas especializações como acupuntura, fisioterapia, psicologia e gerontologia); habitação (metalúrgica, marcenaria e placas solares); desenvolvimento pessoal (palestras, congressos, produção de material impresso, impressão em 3D e pesquisas).



Nesse sentido, a empresa chamada Cozinha oferece alimentação para todos os moradores da Comuna e para mais três empresas do grupo - a creche, o centro geriátrico e o centro de convivência. Também oferece serviço particular para festas e confraternizações nas cidades vizinhas. Faz parte da empresa Cozinha, a produção própria de leite, queijo, iogurte, os pomares e a horticultura produzidos de forma sustentável.

Na área da saúde, a Comuna administra consultórios de atendimento psicológico e de supervisão, fisioterapia, acupuntura, ginástica funcional e uma clínica geriátrica especializada no atendimento de portadores de Alzheimer.

No setor de habitação, o grupo desenvolve material de isolamento térmico residencial e restauração de casas antigas. Há ainda uma metalúrgica e uma marcenaria de apoio e uma área específica de planejamento e montagem de placas solares.

No âmbito do desenvolvimento pessoal, o centro de convivência oferece regularmente seminários, cursos e o desenvolvimento de pesquisas de opinião, bem como a produção e edição de obras referentes aos temas relevantes sobre o tema comunas.

A economia coletiva praticada pelo grupo pressupõe que todas as pessoas da comunidade desenvolvam suas habilidades e que essas não estejam vinculadas com a mera produção de bens que visam rendimentos e lucros. Assim, as atividades domésticas como lavar, secar e guardar a louça têm o mesmo valor das atividades realizadas no consultório médico, na realização de palestras e no processo educativo nas creches. Dito de outra forma, a divisão parcelar e a hierarquia no trabalho são teoricamente inexistentes nesta forma de organização social; não há divisão social do trabalho.

Acima, fiz uma compilação do histórico, dos princípios e da vida cotidiana na comuna de Niederkaufungen. Abaixo, teço sucintamente algumas considerações pessoais sobre ela:

 *Niederkaufungen não é a única comuna da Alemanha. O país se constitui como um estado democrático de direito e assim permite a livre associação de pessoas, desde que obedecidas as leis.  As comunas são pessoas jurídicas regidas pela legislação das organizações não governamentais.

*As associações de pessoas se caracterizam como Non-Profit-Organisationen / NGOs (ONGS) e desfrutam da lei da caridade, não sujeitas ao pagamento de impostos, o que as tornam atraentes para quem possui bens imóveis, mas sem meios de sobrevivência. Na Alemanha há uma complexa e efetiva rede de benefícios sociais para garantir o bem-estar de todos, porém, para usufruir dos benefícios sociais é preciso primeiro esgotar as possibilidades materiais pessoais.

*As comunas não conseguem a autossuficiência. Ofertam uma série de serviços pagos para o público externo, como também adquirem mercadorias de empresas privadas. Outra fonte de renda são os benefícios sociais (sozialhilfe) a que os membros têm direito enquanto cidadãos alemães. 

*Descrito no histórico da Comuna de Niederkaufungen, cerca de mil pessoas sentiram-se atraídas pelo projeto inicial. Todavia, tudo indica que durante as três décadas de existência não mais de 100 membros, entre crianças, adolescentes e adultos, viveram juntos num mesmo período de tempo. É possível inferir que as crianças em idade escolar, ao se defrontarem com outra realidade fora da Comuna, optam em deixa-la ao adquirirem a maioridade legal. 

*Particularmente, a visita à Comuna foi para mim uma experiência rica e reveladora. Creio que o modo de vida coletivo pode ser enriquecedor para alguns, mas fonte geradora de angústias e limitações para outros. A produção é limpa e ecológica, porém insuficiente para a subsistência do grupo. O Estado continua sendo uma fonte fundamental de sobrevivência da Comuna, seja através da isenção de impostos ou pela ajuda social. 

*A organização de vida de tais grupos é sem dúvida uma prática de contestação ao modo de vida capitalista. Particularmente, questiono se tais experiências poderiam prosperar nas democracias, enquanto projetos nacionais, submetendo milhões de pessoas a um sistema, paradoxalmente, extremamente rígido. A história revela as ditaduras como regimes inaugurais das "revoluções" socialistas, enquanto que o capitalismo, na visão de Fábio Konder, se estabeleceu historicamente e globalmente como uma civilização. 

*Contudo, é fato o declínio do pensamento de esquerda no mundo ocidental. Alguns acadêmicos creditam à narrativa defasada a causa para o sucedido. O ambiente social do século XXI nada mais tem a ver com as sociedades industriais do século XIX. A comunicação hostil também está descolada dos anseios de paz para o mundo. Hodiernamente, reatualizar a teoria e renovar o espírito socialista passa respectivamente pela adequação da teoria às práticas. Dessa perspectiva, erigir uma comuna no Brasil, enquanto usina de experiências práticas, não seria uma ideia anacrônica no bojo dos movimentos de esquerda do país.