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quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

O animal "humano"



Sempre é muito bom ter em mente que o Homo sapiens faz parte da espécie animal. A consciência da nossa origem e da nossa condição precária no mundo nos auxilia no arrefecimento de uma possível tendência à arrogância e à prepotência. Aliás, a superioridade humana sobre a natureza é relativa, há que se ter humildade para reconhecer o irrefutável. Nenhuma espécie terrestre domina totalmente o ambiente que a circunda. Pensar-se dominador é tolice pueril. Pensar-se superior, então, é meio caminho retrocedido ao absolutismo. Pensamento retrógrado que em nada contribui para a construção de uma sociedade esclarecida, solidária e intelectualmente desenvolvida.
Relutei em escrever esse texto. Todavia, tento me manter fiel ao princípio de rebater as ignorâncias. É um dever de todos impedir que a incultura se aposse da nossa sociedade, principalmente da juventude brasileira. A impressão que dá é a de que os jovens começam a migrar da esquerda para a direita com os mesmos velhos vícios condenáveis da radicalidade, da inconsistência teórica e dos apelos argumentativos fundamentados na própria opinião e nas contradições e adjetivações escrachadas. A direita se revelando o negativo da esquerda. Cortemos as raízes antes que o inço se espalhe e contamine a boa lavoura.
O oportunismo é conduta dos parvos. Aproveitam-se do inusitado e tentam subordinar os seus próprios interesses à revelia da prudência e da ponderação. Um exemplo tácito é o artigo publicado pelo, pasmem, Burke Instituto, sob título “Se o feto latisse, então você o defenderia? Um escrito cujo único objetivo foi o de polemizar e o de despertar certo “entusiasmo” nos despóticos enrustidos – na sua maioria jovens ingênuos, mas intolerantes e soberbos. Um risco à nova direita que surge no Brasil. Segundo Andrew Lobaczewski, os psicopatas dominam no pensamento comunista, eles espalham a relatividade moral por todo o tecido social com o objetivo de que as relações humanas sejam carcomidas, os valores confundidos e assim facilitar o aprisionamento das mentes fracas. Ora, esse artigo, a meu ver, se prestou exatamente para isso, confundir as mentes débeis, oportunizar uma miscelânea de opiniões desqualificadas e afiançar um discurso fundamentalista de direita. Algo que deve ser abortado de imediato.
À semelhança dos comunistas, o autor inicia o texto enaltecendo a própria “nobreza” da sua personalidade – “Eu sou o tipo de pessoa que, ao surgir um vídeo de maltrato a animais no Facebook, logo rola para baixo a timeline para que aquele horror suma o quanto antes. Eu simplesmente não tenho psicológico para ver velhos, crianças e animais sofrendo (...), eu só consegui ver o vídeo do segurança do Carrefour, matando o pobre cachorro, depois de muita insistência de alguns amigos”.
Essa conversa mole inicial tem o poder de ilusionar os incautos.
Mas (...) ele continua – “mas outra situação também pulsou em minha mente. Muitas pessoas que estão indignadas com a brutal morte do cachorro pelo segurança do Carrefour — corretamente indignadas, reafirma-se de passagem — são as mesmas que encontram alguma espécie de dignidade no ato de matar fetos humanos intrauterinos”.
Pergunto eu, fundamentado em quais indicadores ele tirou essa premissa? Quem defende animais de maus-tratos também defende o aborto – criatura insana.
Ele continua confundindo as mentes dos incautos e desqualificando ironicamente os defensores do bem-estar animal “guardo a prudência como virtude de análise do mundo, então, fiquem em paz, esse texto não serve para todos aqueles que abraçam árvores e conversam com samambaias”.
Receoso de receber críticas pela generalização, escondeu-se atrás da suavização semântica. Um enrolador!
Ele continua enaltecendo a sua própria racionalidade, inclusive cita o ativista Peter Singer, o nomina de filósofo famosinho, que defende a ideia de respeito aos animais não humanos - “a dignidade de um rato, de um pato e de um pombo possui o mesmo peso da dignidade da vida humana”. O autor do artigo, então, conclui, a partir de uma frase descontextualizada, que isso é um absurdo, como se o fato da crueldade de um animal racional sobre um indefeso animal irracional estivesse submetido à regra da dignidade e não aos impulsos da maldade do homem, que deveriam ser recalcados numa sociedade civilizada. Um verdadeiro “despautère” mental. Esse pensamento tem origem profunda no nosso psicológico que, vez ou outra, tenta ressurgir dos porões da psique – há seres que não têm alma, podemos então escraviza-los. Nós sabemos a quem serviu essa visão de mundo de superioridade humana. Essa ideia está obsoleta para a direita do século XXI.
A fim de agradar os conservadores obtusos, o autor usa um caldeamento de assuntos nada a ver coisa com coisa – vejam, ele cita, em um texto de poucos parágrafos, temas como maus tratos a animais; aborto; estupro; pedofilia; Ongs, planejamento familiar e até a ONU. Há que se fazer uma análise de conteúdo!
Para além, o articulista retira da prateleira a empoeirada “origem das espécies”, publicada em 1859, para justificar o status de “dominador” do homem e anistiar moralmente o biltre que matou a porretadas um animal indefeso. Nessa circunstância, eu chego a duvidar quem dos dois envolvidos no delito possuía alguma racionalidade – talvez o cão, que mesmo ferido não fugiu, se deixou matar por duvidar da perversidade humana.
O mais estarrecedor, porém, foram os comentários. Desde as comparações como “uma senhora de 106 anos foi vitimada por um ladrão e ninguém se comoveu”; até “o cachorro invadiu o estabelecimento”; “é só um cachorro, gente”; “o supermercado apoiou o Bolsonaro” “é a esquerda que está apoiando o cachorro” entre outras doidices. É de ruborizar qualquer um que entenda pouca coisa sobre o conservadorismo.
Essa é a nova direita que surge no País? Quer dizer que se o empresário apoiou o nosso candidato, não recebe reprovação? Essa direita não me representa. Duvido que represente Bolsonaro.
Revela-se como grave deformação de personalidade a insensibilidade humana diante da dor alheia. Tentar justificar a crueldade com argumentos pífios como o da superioridade da raça, é abominável.
Foi também um ataque à classe média que tem acolhido cada vez mais animais de estimação em seus lares. O psiquiatra Elko Perissinott, do Hospital de Clínicas de São Paulo, disse à Folha que “o contato com animais de estimação tem a mesma função do contato interpessoal: suprir carências afetivas. É uma relação benéfica e prazerosa. O simples toque em um animal libera hormônios que aumentam a disposição para contatos sociais, entre outros benefícios”. (09.09.2018).
Cachorros e gatos são treinados para fazer companhia a idosos nas clínicas geriátricas de todo o mundo; hospitais, inclusive no Brasil, têm permitido a permanência de animais de estimação de pacientes internados; animais auxiliam comprovadamente o tratamento de humanos portadores de autismo e depressão; o cão-guia dá olhos aos humanos que não conseguem enxergar. Animais contribuem para a locomoção de pessoas no interior do Brasil, bem como na lida do campo e na roça. Cavalos são tratados com apreço pelos militares e os cães são inclusive condecorados com medalhas nas corporações policiais. Não serei prolixa, por isso penso que vale a pena uma leitura sobre o papel fundamental de determinados animais para a vida humana. Só um tantã poderia relativizar o companheirismo entre homens e animais, só não é pior que aplaudir e curtir uma ignomínia registrada em texto público.
Na antevéspera do segundo turno, o então candidato à presidência da República, em entrevista à rádio Arapuan, na Paraíba, declarou: “em falar em animais de estimação, vocês podem ter certeza que em nosso governo teremos uma secretaria específica para tratar dos direitos dos animais, os animais merecem respeito.” – disse Bolsonaro. (Política Estadão – 27.10.2018)
Assim, o senso moral da humanidade tende a evoluir junto com o nosso dinamismo biológico. O psicólogo Paul Bloom, da Universidade de Yale, explica como o ambiente em que um indivíduo está inserido pode estimular a gentileza ou a crueldade. Num território onde a violência se banalizou, não deve haver espaço para comoção pela morte cruel de um cão. Essa foi a mensagem do autor do texto publicado pelo Burke Instituto Conservador. Antes de ruminar tal crítica, método usado pela esquerda, poderia ter realizado uma reflexão sobre alternativas de resgate da indignação da sociedade brasileira ante a violência generalizada, que se estende aos animais.
Para finalizar, esclareço ao caro aspirante a filósofo conservador que, queira o Deus magnânimo e misericordioso que nunca lhe ocorra, se confrontado um dia com a maldade humana a sua racionalidade pouco ou nada lhe valerá – quiçá, não raro acontece, seja salvo por um animal irracional.
Esse texto aborda a crueldade humana. Jamais serei indiferente ou conivente.