Existem
escritores. Existem pessoas que escrevem boas histórias. Frau Ruppel poderia
ser um de nossos parentes - aquele contador das histórias da nossa família. O
livro não tem valor histórico acadêmico, mas para quem, como eu, valoriza a
sociologia da vida real, é um regalo.
O pequeno
livro, publicado na língua inglesa no ano de 2008, escrito por Irmgard Ruppel, nascida em um
apartamento à margem do Rio Spree, em outubro de 1921, Berlim, nos presenteia
com relatos cotidianos, ora hilários, ora dramáticos, de uma família alemã
antinazista na Alemanha de Adolf Hitler. É amplamente conhecido o fato de o
regime do terceiro Reich ter perseguido e assassinado milhões de judeus,
milhares de testemunhas de Jeová, ciganos, comunistas, homossexuais,
deficientes físicos e mentais e
opositores ideológicos do regime. O que pouco se manifesta, porém, é que
no último grupo acima mencionado se encontravam milhares de germânicos que
foram igualmente perseguidos, torturados, confiscados em seus bens materiais,
mortos, ou, na melhor das situações, deportados sem algum direito legal. A
simplicidade e a despretensão da narrativa de "Lembranças da Guerra"
nos conduz seguramente a um passado recente execrável, todavia, cujo
esquecimento não é uma boa escolha. Irmgard vive desde 1947 em Nova York, onde
se casou e teve dois filhos. Esta história real ela dedica a eles como registro
histórico de família e exemplo de resiliência.
"A nova República não tinha fundamentos
democráticos. Oficiais descontentes formaram organizações paramilitares, com a
intenção de derrubar o novo governo de centro e centro esquerda. (…).
Assassinatos de políticos tornaram-se frequentes (…), o mais proeminente deles
foi o do ministro das relações exteriores, o intelectual judeu Walter
Rathenau"
Irmgard era
filha única de Arthur Zarden, um alto funcionário do Tesouro alemão. Sua mãe
era filha de um industrial e prezava por uma vida rica em experiências sociais.
Nas palavras de Irmgard " minha mãe me
amava, mas não queria ser incomodada com os detalhes da educação de uma
criança". De família classe média alta, teve uma escolaridade
formal até os 15 anos de idade, contudo, a convivência em círculos sociais
cultos e o acesso à literatura, a viagens e a cursos de formação pessoal lhe
conferiram uma requintada educação. Os livros se tornaram os seus melhores
amigos e desde os sete anos de idade frequentava o teatro e amava os filmes de
Chaplin. História era sua matéria preferida, mas cursou aulas de bordado,
ciências domésticas, equitação, bridge e dança. Realizou dezenas de viagens
pela Europa, Estados Unidos e Norte da África. Conviveu com pessoas influentes
- "no outono de 1932, meus pais deram um
almoço para 25 pessoas. Entre os convidados estava o príncipe Heinrich, o
consorte da rainha Wilhelmina, da Holanda".
Apesar da
herança derrotista da primeira guerra e da Grande depressão, durante a
República de Weimar, Berlim "era uma
metrópole vibrante e animada, social e, sobretudo, cultural. Peças de teatro,
óperas, concertos, museus, galerias de arte e o cenário literário
floresciam." No dia 30 de janeiro de 1933, um ato do então
presidente da Alemanha, Von Hindenburg, mudaria para sempre a Alemanha e a
história do mundo.
"Nesta noite, meus pais foram no elegante Press
Ball. Para celebrar a nomeação de Hitler, como chanceler, um desfile com tochas
atravessava o portão de Brandenburgo."
Adendo:
Adolf Hitler não foi eleito pelo voto
popular direto. A última eleição parlamentar da República de Weimar - 1932 -
não conferiu ao partido nazista maioria dos votos. Hitler foi nomeado chanceler
por conta de uma coalisão partidária.
Irmgard nos
conta que, a partir deste momento, o Führer iniciou
a expulsão dos judeus, considerados por ele os responsáveis pela perda da
guerra. Nas palavras da autora:
"seu antissemitismo continha um forte componente
de inveja - sempre é gratificante culpar uma minoria. (…) Era óbvio que mais
cedo ou mais tarde a guerra começaria - em março de 1939, Hitler invadiu a
Tchecoslováquia". Foi o começo.
Á época, o
exército alemão recrutou todos os homens em condições de lutar, o que afetou a
mão de obra para o labor nas fábricas e nos serviços. Todas as mulheres a
partir dos 18 anos foram convocadas para servir nos campos de trabalho
obrigatório, Irmgard foi uma delas.
A Gestapo
rotineiramente monitorava os telefones e as "reuniões sociais". Em
setembro de 1943, após um chá na casa de uma família amiga, a vida da família
Zarden mudaria para sempre - "a primeira
regra na luta pela sobrevivência era nunca falar com estranhos sobre
política"
Irmgard foi
levada para o campo de concentração de Sachsenhausen, seu pai estranhamente se
suicidara na presença de guardas em meio a um interrogatório com o Kriminalrat
Lange, e sua mãe morreu em virtude de uma "gripe". " A prisão tinha dois andares, as celas embaixo
eram escuras e úmidas (…) a comida, na maioria das vezes uma sopa rala." Ela fora
acusada de alta traição, não sendo o crime relatado. Muitos dos alemães que
estavam na "tarde do chá" foram decapitados, mesmo com pedidos de
clemência ao Führer.
A guerra
termina, outros problemas começam.
" as roupas eram racionadas, todas as que eu
tinha eram antes da guerra - os sapatos eram um verdadeiro problema (…) é
surpreendente como alguém tenha passado tantos anos sem comprar nada de
novo."
Os
alimentos eram escassos, o serviço ferroviário funcionava irregularmente, as
mulheres foram chamadas a trabalhar nas fábricas e os reichmarks perderam o
valor.
"O centro de Berlim estava em ruínas (…), eu só
levaria o que pudesse carregar."
Último capítulo: Indo
para a América. Aqui suscito a tua
curiosidade.
Um relato
instigante de uma alemã sobrevivente da segunda guerra. Para mim fica a certeza
que a paz é sempre melhor que a guerra. Na guerra ou no ódio - todos achamo-nos
sujeitos a perder.