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quarta-feira, 22 de março de 2017

Lembranças da Guerra. Irmgard Ruppel. Resenha


Existem escritores. Existem pessoas que escrevem boas histórias. Frau Ruppel poderia ser um de nossos parentes - aquele contador das histórias da nossa família. O livro não tem valor histórico acadêmico, mas para quem, como eu, valoriza a sociologia da vida real, é um regalo.

O pequeno livro, publicado na língua inglesa no ano de 2008,  escrito por Irmgard Ruppel, nascida em um apartamento à margem do Rio Spree, em outubro de 1921, Berlim, nos presenteia com relatos cotidianos, ora hilários, ora dramáticos, de uma família alemã antinazista na Alemanha de Adolf Hitler. É amplamente conhecido o fato de o regime do terceiro Reich ter perseguido e assassinado milhões de judeus, milhares de testemunhas de Jeová, ciganos, comunistas, homossexuais, deficientes físicos e mentais e  opositores ideológicos do regime. O que pouco se manifesta, porém, é que no último grupo acima mencionado se encontravam milhares de germânicos que foram igualmente perseguidos, torturados, confiscados em seus bens materiais, mortos, ou, na melhor das situações, deportados sem algum direito legal. A simplicidade e a despretensão da narrativa de "Lembranças da Guerra" nos conduz seguramente a um passado recente execrável, todavia, cujo esquecimento não é uma boa escolha. Irmgard vive desde 1947 em Nova York, onde se casou e teve dois filhos. Esta história real ela dedica a eles como registro histórico de família e exemplo de resiliência.

A derrota da Alemanha na primeira Guerra Mundial forjou um contexto político e econômico caótico.

     "A nova República não tinha fundamentos democráticos. Oficiais descontentes formaram organizações paramilitares, com a intenção de derrubar o novo governo de centro e centro esquerda. (…). Assassinatos de políticos tornaram-se frequentes (…), o mais proeminente deles foi o do ministro das relações exteriores, o intelectual judeu Walter Rathenau"

Irmgard era filha única de Arthur Zarden, um alto funcionário do Tesouro alemão. Sua mãe era filha de um industrial e prezava por uma vida rica em experiências sociais. Nas palavras de Irmgard " minha mãe me amava, mas não queria ser incomodada com os detalhes da educação de uma criança". De família classe média alta, teve uma escolaridade formal até os 15 anos de idade, contudo, a convivência em círculos sociais cultos e o acesso à literatura, a viagens e a cursos de formação pessoal lhe conferiram uma requintada educação. Os livros se tornaram os seus melhores amigos e desde os sete anos de idade frequentava o teatro e amava os filmes de Chaplin. História era sua matéria preferida, mas cursou aulas de bordado, ciências domésticas, equitação, bridge e dança. Realizou dezenas de viagens pela Europa, Estados Unidos e Norte da África. Conviveu com pessoas influentes - "no outono de 1932, meus pais deram um almoço para 25 pessoas. Entre os convidados estava o príncipe Heinrich, o consorte da rainha Wilhelmina, da Holanda". 

Apesar da herança derrotista da primeira guerra e da Grande depressão, durante a República de Weimar, Berlim "era uma metrópole vibrante e animada, social e, sobretudo, cultural. Peças de teatro, óperas, concertos, museus, galerias de arte e o cenário literário floresciam." No dia 30 de janeiro de 1933, um ato do então presidente da Alemanha, Von Hindenburg, mudaria para sempre a Alemanha e a história do mundo.

"Nesta noite, meus pais foram no elegante Press Ball. Para celebrar a nomeação de Hitler, como chanceler, um desfile com tochas atravessava o portão de Brandenburgo."

Adendo: Adolf Hitler não foi eleito pelo  voto popular direto. A última eleição parlamentar da República de Weimar - 1932 - não conferiu ao partido nazista maioria dos votos. Hitler foi nomeado chanceler por conta de uma coalisão partidária.

Irmgard nos conta que, a partir deste momento, o Führer iniciou a expulsão dos judeus, considerados por ele os responsáveis pela perda da guerra. Nas palavras da autora:

"seu antissemitismo continha um forte componente de inveja - sempre é gratificante culpar uma minoria. (…) Era óbvio que mais cedo ou mais tarde a guerra começaria - em março de 1939, Hitler invadiu a Tchecoslováquia". Foi o começo.

Á época, o exército alemão recrutou todos os homens em condições de lutar, o que afetou a mão de obra para o labor nas fábricas e nos serviços. Todas as mulheres a partir dos 18 anos foram convocadas para servir nos campos de trabalho obrigatório, Irmgard foi uma delas.

A Gestapo rotineiramente monitorava os telefones e as "reuniões sociais". Em setembro de 1943, após um chá na casa de uma família amiga, a vida da família Zarden mudaria para sempre - "a primeira regra na luta pela sobrevivência era nunca falar com estranhos sobre política"

Irmgard foi levada para o campo de concentração de Sachsenhausen, seu pai estranhamente se suicidara na presença de guardas em meio a um interrogatório com o Kriminalrat Lange, e sua mãe morreu em virtude de uma "gripe". " A prisão tinha dois andares, as celas embaixo eram escuras e úmidas (…) a comida, na maioria das vezes uma sopa rala."  Ela fora acusada de alta traição, não sendo o crime relatado. Muitos dos alemães que estavam na "tarde do chá" foram decapitados, mesmo com pedidos de clemência ao Führer.

A guerra termina, outros problemas começam.

" as roupas eram racionadas, todas as que eu tinha eram antes da guerra - os sapatos eram um verdadeiro problema (…) é surpreendente como alguém tenha passado tantos anos sem comprar nada de novo." 

Os alimentos eram escassos, o serviço ferroviário funcionava irregularmente, as mulheres foram chamadas a trabalhar nas fábricas e os reichmarks perderam o valor.

"O centro de Berlim estava em ruínas (…), eu só levaria o que pudesse carregar."

Último capítulo: Indo para a América. Aqui suscito a tua curiosidade. 

Um relato instigante de uma alemã sobrevivente da segunda guerra. Para mim fica a certeza que a paz é sempre melhor que a guerra. Na guerra ou no ódio - todos achamo-nos sujeitos a perder.